Amor transatlântico
Diz-lhe que volto hoje para casa.
Assim que chegar, pulando o portão
depois da alegria desenfreada dos cães
baterei à porta. Uma sílaba gigante.
Olhar-me-á com espanto, envelhecemos
as duas, tão depressa. Mãe.
Diz-lhe que volto amanhã para casa
e que a California me atrasou.
Assim que chegar, tocando à campainha
depois da alegria desenfreada dos cães
ela abrirá a porta. Uma sílaba tremenda.
Mãe. Toca-me sempre o rosto três vezes
para ver se existo. Não existo.
Diz-lhe que volto para casa mês que vem
e que a América do Sul me atrasou.
Ela estará à minha espera, sorrindo:
entre a alegria desenfreada dos cães
perguntará pelo que vi e escrevi.
São Paulo, Santiago, Bogotá
mil engenhos verbais, estudos
anatómicos, ruidosos, atómicos.
Sílaba extensa, um amor transatlântico.
“Não há vida para tantos incêndios”
dirá a mãe. “Poemas, talvez”.
Diz-lhe que volto para casa ano que vem
e que as palavras me atrasaram.
in revista Ouriço n.1 (Brasil)
05.11.2022
Patrícia Lino
Sérgio Milhano, PontoZurca