Dearest Mr. Jones
Passavas os dedos pelo epílio do Banho de Pallas
quando o teu cão morreu.
Incrédulo, achaste graça na coincidência.
Canhim morde, canhim morre. Actéon vai
ou vive. Quem decide? A vida, tão real
como a literatura, dois grãozinhos cúbicos
no café, e a calma. Tu, que curioso leste
também, os modernos sabes como importa
a apreciação miúda e ínfima das coisas. E
apesar de nunca o teres entendido, repete-lo
aos amigos, como se te tivesse sido dado
pela coalizão secreta dos leitores de poesia
o talento invulgar de viver bem.
Preparas-te para dormir, um dos polegares
sobre os olhos. Como te cansaste. O cão
não volta, mas o tempo tampouco cessa.
Sonharás com Micenas, H. Schliemann
aquela ópera de que gostas tanto, lindo
e inquietante tornado de referências. Ah
e as tragédias, o destino, os dias comuns
ficarão marcados pela minúcia com que
dúctil, manuseias os clássicos. Acima
das sobrancelhas, com os braços abertos
ou sob a pontinha do nariz soberbo.
É quando ouves o grande ruído lá fora.
Apressas-te até à janela intrigado pelo som
crescente. São gritos, libélulas e tambores.
Uma estátua que tomba alçada pelo futuro.
Não o entendes. Nunca entenderás o furor
e o tesão do canto, por que meio mundo
enraivecido, algo rancoroso, tão insolente
se presta a tais disputas. Afinal, a beleza
reparte-se pelos muitos livros no silêncio
da tua casa. Que grunhidos podem, enfim
haver maiores que a tradição? Adormeces.
in Volume Dylan 80 (Corsário-Satã, Brasil 2021)
03.11.2022
Patrícia Lino
Sérgio Milhano, PontoZurca