“Mulher, Vida, Liberdade”

Um abismo pode conter todo o silêncio, ser a casa do medo, das noites mais terríveis. Pirouz Eftekhari observa a realidade iraniana, “de cair no abismo”, e a coragem dos jovens, a bravura das mulheres, que saem de casa para protestar, despedindo-se dos pais como se fosse a última vez. Saem para enfrentar a escuridão, com gestos ao mesmo tempo desafiadores e primordiais. “Quando uma mulher corta o cabelo, algo de realmente mau aconteceu por ali. É muito tenebroso”, afirma Babak Ghanbari.

 

Cortar o cabelo, queimar o véu islâmico (hijab), dar um beijo em público – no longo caminho da explosão mais libertadora chamada revolução, Lida Bonakdar reflete sobre as performances poéticas que tomaram conta das ruas desde a morte de Mahsa Amini, a 16 de setembro de 2022. A jovem de 22 anos foi detida em Teerão e espancada pela “polícia da moralidade”, pelo “mau uso” do véu islâmico. Podia ser apenas mais um caso sem história, mas transformou-se na história de todos os casos. Na vontade coletiva de uma afirmação da mudança.

 

Fotografias, vídeos, partilhas, comentários, slogans, hinos, canções entoadas com profunda raiva, aquela raiva capaz de corrigir durante alguns segundos a injustiça institucionalizada. Canções como “Baraye”, que ouvimos no final desta peça, como grito de resistência de um grupo de presos políticos na principal prisão de Teerão. “Baraye” (que significa “por” ou “por causa de”), foi composta por Shervin Hajipour, a partir de dezenas de tweets de iranianos sobre os motivos que os levaram a protestar. O músico partilhou a canção pelo Instagram, foi detido e depois libertado, nos movimentos opacos de um regime que concorre com mais de um milhão de visualizações da música no Youtube. Sociedade, economia, política, vida, está lá tudo: “por dançar nas ruas”; “pelo medo de dar um beijo em público”; “pelos estudantes, pelo seu futuro”; “pelo paraíso obrigatório”; “pelas raparigas que queriam ter nascido rapazes”; “Por Homem, Pátria, Desenvolvimento” – a outra face de um slogan que une homens e mulheres.

 

Quase 20 mil manifestantes já foram detidos, cerca de 500 pessoas morreram, segundo organizações não governamentais. Desde o início dos protestos, pelo menos quatro pessoas foram executadas e mais de cem podem acabar no corredor da morte. Mas os números não podem ser apenas isso. “Os ditadores não podem viver para sempre”, explica Babak, referindo-se a Bahram, o rei que caçava gazelas e que foi caçado pela morte, no poema de Omar Khayyam, onde há um jogo polissémico com a palavra “gur”, que significa gazela e também túmulo. “Os jovens têm um projeto, têm um futuro”, acredita Pirouz – esse futuro é a “construção da liberdade”.

 

Seis meses depois do início dos protestos, a urgência das palavras pode ter perdido contornos nos muros, na voz das ruas, mas permanece feroz em cada linha do poema de Reza Baraheni, apresentado por Lida. O sofrimento de alguém que foi violado e pergunta à mãe: “Porque não me puxas para dentro, tal como me expulsaste para fora, porquê?”.

 

Isabel Meira

 

Aviso: este Poemundo contém imagens violentas.

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Dearest Mr. Jones

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Passavas os dedos pelo epílio do Banho de Pallas

quando o teu cão morreu.

 

Incrédulo, achaste graça na coincidência.

Canhim morde, canhim morre. Actéon vai

ou vive. Quem decide? A vida, tão real

como a literatura, dois grãozinhos cúbicos

no café, e a calma. Tu, que curioso leste

também, os modernos sabes como importa

a apreciação miúda e ínfima das coisas. E

apesar de nunca o teres entendido, repete-lo

aos amigos, como se te tivesse sido dado

pela coalizão secreta dos leitores de poesia

o talento invulgar de viver bem.

 

Preparas-te para dormir, um dos polegares

sobre os olhos. Como te cansaste. O cão

não volta, mas o tempo tampouco cessa.

Sonharás com Micenas, H. Schliemann

aquela ópera de que gostas tanto, lindo

e inquietante tornado de referências. Ah

e as tragédias, o destino, os dias comuns

ficarão marcados pela minúcia com que

dúctil, manuseias os clássicos. Acima

das sobrancelhas, com os braços abertos

ou sob a pontinha do nariz soberbo.

 

É quando ouves o grande ruído lá fora.

Apressas-te até à janela intrigado pelo som

crescente. São gritos, libélulas e tambores.

Uma estátua que tomba alçada pelo futuro.

Não o entendes. Nunca entenderás o furor

e o tesão do canto, por que meio mundo

enraivecido, algo rancoroso, tão insolente

se presta a tais disputas. Afinal, a beleza

reparte-se pelos muitos livros no silêncio

da tua casa. Que grunhidos podem, enfim

haver maiores que a tradição? Adormeces.

 

 

 

 

in Volume Dylan 80 (Corsário-Satã, Brasil 2021)

 

 

 

data de publicação
03.11.2022
gravação
Patrícia Lino
masterização
Sérgio Milhano, PontoZurca