Manual para decapitar heróis
Achega-te, inala e corta, tal a machadada
no que suporta o busto, que quando a cabeça caia
te sobre ainda tempo para o entulho. Começa
por baixo, no sentido que mais te aprouver
e não te assustes, porque há na cesura o encontro
com as partes. O que desaba não é a tradição
mas o fabrico do passado. Cerceia a eito
o monstro pela raiz e, caso eles te cuspam
adianta, arreganhando os dentes, a mordidela.
Se te faltar força, descansa o braço, repousa
o olho com que escutas o princípio. E de volta
ao dispor ambos os pés sobre as arestas do pedestal
tem cautela. Não é a tradição que desaba, ou a lisura
mas é muito o que descamba. Há quantas palavras
afinal, firmaram eles as pautas e a praxe?
Agora que deste a espalda à peleja e o coração
à demanda, percebes como o golpe prediz a borda
vária e desconhecida, da máquina, que à máquina
sucederão a boca e as línguas, o gesto e os corpos
em meia-luz. Ao desígnio da invenção seguirá
por seu turno, a vida. E, como um susto, a vida
não se prevê. Cabeleiras, grinaldas e dorsos rolarão
porque à história agradam as piruetas, para o museu
das coisas amorfas. Augúrios de lado, o canto faz-se
de ouvido pregado à terra. Verga-te, por isso, até
à oscilação vaga e firme do achado. Aprende
tão perto da morte, a toada circular do recomeço
e escuta como, ao tombo estirado dos gigantes de pedra
despontam plantas e grilos num reino de calhaus.
Se falassem, em que tempo do tempo lhes falarias?
in Reciclagem do poder (Mariposa Azual, Lisboa, Outubro de 2022)
31.10.2022
Patrícia Lino
PontoZurca