diáspora não é lar
leio num livro em árabe a história e a história da poeta
fico martelando martelando por que não submerjo e escrevo
também pra além e além de minhas avós?
além até mesmo das vovozinhas que invento e furto
vou ao oráculo e olho bem as imagens dessa escritora
viva que se autodefine
brown
um tradutor escreve caramelo
penso em belchior
— sei dizer as sete gerações do meu cão belchior
um tradutor escreve marrom
— lembro dos lápis de cor que não eram “cor de pele”
um tradutor escreve parda
— sei dizer o papel de pão que foi meu caderno na alfabetização
que alegria se autodefinir
penso na mulatinha que fui
negrinha quando convinha
birracial branquela plebeia
kisses, megan princess, kisses!
tudo que não sei
sabe a polícia
sabem os caras do censo
sabem os brancos quando não estão matando gente
todo mundo parece saber
afogaram minha casa e minha gente no atlântico?
diáspora não é lar
gritos terríveis
cheiro de pelos de porco sapecando
vai ter carne hoje!
fica feliz a pivetada
aquela fumaça é minha família?
o oráculo não diz se minha casa foi afogada
não diz se minha família foi queimada
não diz das árvores que imagino
tantas e tantas voltas pra esquecer um nome
não diz dos laços que lanham as carnes
as carnes fodidas pra chegar a este branco
um branco coletivo — na pele, na história
gente? atlântica?
diáspora não é lar
não sou neta das bruxas que não foram queimadas
minha avó branca adotou minha mãe preta
minha avó branca espancava minha mãe preta
minha avó branca perdoou seu marido branco
que estuprou uma menina de 7 anos
— até que a morte os separe
impossível escrever dentro d’água
impossível escrever no meio do incêndio
o antes da avó postiça é tudo afogamento, ruína
o antes da avó paterna também
ela só tremia e tremia e tremia quando fugimos ou fomos expulsas
— pelo homem branco, marido estuprador
isso é tudo é a mesma coisa
diáspora, não lar
inédito
22.11.2022
Nina Rizzi
Sérgio Milhano, PontoZurca