Então passou o tempo e as curvas
E os caminhos trouxeram-nos aqui
Um lugar onde dar voltas em torno
*
Então espalhar-se pelos bairros.
Tomar de assalto Tunísias caseiras.
Desmanchar povoados, linhas férreas, calendários.
Ocupar os tempos que estiverem vivos.
Tomar conta uns dos outros.
Começar por algum lado. Parar. Onde houver redor
dos pés e cheiros. Sob céus estranhos. Ouvir. E ver,
se alguma luz houver. Envolver-se em panos negros.
Cambalear por entre as linhas da lei das rendas. Lançar
cuspo sobre os reinos da terra. Estender as mãos. Com
carvões acesos elevar a voz. Devorar-se vivo. No lugar.
*
Rasgar teoremas, carnes, laranjas maduras. De manhã partir.
Levar nos bolsos preciosidades, fios, ruínas, espinhos, terra,
covardias, pequenos purgatórios, bagos de arroz, colheres,
anzóis, molhos inúteis de chaves, tempos, prodígios vários.
Correr atrás de todos os rostos. Cansar-se. Abreviar os dias.
Anoitecer, suster a respiração. Perdurar. Livrar-se da língua
materna. Produzir sons. Não ter nada a dizer sobre si mesmo
senão que haverá algo atrás de algo. Talvez. Estes solavancos.
Isto. Algo a arder de alto a baixo. Estar assim rodeado ainda.
Esgueirar-se pelo ângulo morto de claros inimigos imaginados.
Amontoar-se para passar a noite a salvo, aqui. E amarrar-se
a correntes e cadeados, como as cadeiras e mesas de esplanada.
Esperar e então seguir o rasto das iluminações eléctricas. Chegar
a casa. Bem. Uma casa. Onde clarear porque vem ao antebraço
o fruto de candeeiros. Ficar por cá. Onde houver à mão um ferro
atravessado, quatro cabides. Povoar. Aprender então os costumes.
…
Apagar-se. Amanhecer amanhã. Triunfar.
Amanhã.
Miguel Cardoso
excerto de Víveres (2017, Tinta-da-China)
11.03.2022
Oriana Alves
PontoZurca