O dia começa pela sombra
Virá o dia em que emperrará
a assídua manivela das horas
Entretanto o ar engendra
o tempo e lenta a ferrugem
e a verdadeira vida
range e engasga-se
*
Olho por longo tempo
Confirma-se: os atalhos estão impraticáveis
(aceno a cézanne e cesariny
salut jean-arthur como está aí o tempo
em terra nullius)
O dia a puxar por perras correntes de ar
Lá arranca sem mistério
o primeiro minuto matinal
hora entreaberta
e eu perro das mãos
à boca e ao relento
Estamos muito à frente em termos de vento
Não há vento que nos não venha
Não chegaremos a Ítaca
mas chegaremos despenteados
a qualquer lado
*
E lá arranca sem mistério o segundo minuto matinal
Nem me acode o ranger habitual
de pescoço em baço acorde
nem uma rima imperfeita
para me acostumar ao fosco
O ar está em lantejoulas, o que não ajuda
Era suposto ondular
Porra
Para alguma coisa me fiz míope:
dizem que ajuda a atravessar as trevas
Miguel Cardoso
excerto de Os Engenhos Necessários (2014, &etc)
08.03.2022
Oriana Alves
PontoZurca