[A uns passos do canto]
Eu não tenho culpa se tens frio, querido
Não esperava a tua morte
Joyce Mansour
A uns passos do canto onde a cama
se afoga lentamente,
reuni o que restava da minha fé perdida
sobre espaços silenciosos, como se quisesse
medir a duração de Deus contra a sombra da tua retirada.
Tudo só ditava já um soluço
e eu fiz-te um gesto usando a imaginação
da morte, chamava
para servir-te chá num parêntesis,
afastando com a mão essa nuvem
de um olor que te prendeu uma flor no cabelo.
As chávenas arrefeciam e na porcelana
vimos os pássaros azuis apagar-se.
Pedi que o calor perdurasse,
e olhava em redor, vendo tudo cobrir-se
de ervas altas. Sobre a minha boca enterrada
senti passar a primavera, e algures
nós dois ainda soprando
sorrindo aguardando esse travo forte
tão doce uns séculos mais tarde.
De Aurora para os Cegos da Noite (2020, Maldoror)
06.05.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, PontoZurca