Perder a vergonha

Num ano de muita luta dos professores, a professora de português Vanda Rosa é a convidada de Bárbara Aparício, Luana Martinuzo e Alexandre Dias (via Whatsapp) no primeiro episódio do podcast “Perder a vergonha”.

 

Das reinvindicações dos professores ao prazer da conversa, da evolução da escola às fardas da marinha, da vergonha de falar em público à descoberta do livro de cada um, de muito se fala neste encontro que passa a correr.

 

O intimismo da rádio, a curiosidade e o dom da conversa deixam a perder de vista a habitual timidez dos entrevistadores e abrem o apetite para mais.

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“Desastre” foi publicado no jornal O Porto, em 1875. É um dos três poemas incluídos no 5º episódio de “O Radiolivro de Cesário”, que publicámos em Março de 2022.

Criador de uma linguagem poética concreta e realista, Cesário Verde (1855-1886) foi descrito por Pessoa como um “relâmpago” na paisagem literária portuguesa de então.
A leitura, feita por Guilherme Gomes, corre sobre paisagens sonoras de lugares onde o poeta viveu, de Lisboa a Linda-a-Pastora (Oeiras).

 

 

 

Desastre

 

Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,

Soltando fundos ais e trêmulos queixumes;

Caíra dum andaime e dera com o peito,

Pesada e secamente, em cima duns tapumes.

 

A brisa que balouça as árvores das praças,

Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,

E dentro eu divisei o ungido das desgraças,

Trazendo em sangue negro os membros ensopados.

 

Um preto, que sustinha o peso dum varal,

Chorava ao murmurar-lhe: “Homem não desfaleça!”

E um lenço esfarrapado em volta da cabeça,

Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.

 

Findara honrosamente. As lutas, afinal,

Deixavam repousar essa criança escrava,

E a gente da província, atônita, exclamava:

“Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!”

 

Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;

Mornas essências vêm duma perfumaria,

E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,

Numa travessa escura em que não entra o dia!

 

Um fidalgote brada e duas prostitutas:

“Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!”

Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas

E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.

 

Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,

De bagas de suor tinha uma vida cheia;

Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,

Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.

 

O mísero a doença, as privações cruéis

Soubera repelir – ataques desumanos!

Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos

Andara a apregoar diários de dez-réis.

 

Anoitecera então. O féretro sinistro

Cruzou com um coupé seguido dum correio,

E um democrata disse: “Aonde irás, ministro!

Comprar um eleitor? Adormecer num seio”?

 

E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,

– Conservador, que esmaga o povo com impostos -,

Mandava arremessar – que gozo! estar solteiro! –

Os filhos naturais à roda dos expostos…

 

Mas não, não pode ser… Deite-se um grande véu…

De resto, a dignidade e a corrupção… que sonhos!

Todos os figurões cortejam-no risonhos

E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.

 

E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,

Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:

Isto porque o patrão negou-lhes a licença,

O inverno estava à porta e as obras atrasadas.

 

E antes, ao soletrar a narração do fato,

Vinda numa local hipócrita e ligeira,

Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefato:

“Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!”

 

 

 

 

In Obra poética integral de Cesário Verde (1855-86), Dinalivro, 2013

 

data de publicação
13.01.2022
edição áudio e sonoplastia
Oriana Alves
Gravações de campo
Oriana Alves e Miguel Lucas Mendes
masterização
Pedro Baptista, PontoZurca

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