O novíssimo testamento
Para acabar de vez com os direitos humanos
e restaurar os direitos divinos
Escrevi este testamento com sangue
de galinha
eu que não esqueço nunca a minha condição de pilha-galinhas
condenado a viver num galinheiro povoado de fantasmas de
galinhas-da-índia patos perus gansos garnizés
e a cacarejar pela noite fora
sem que um só galo da vizinhança me responda
nem os galos dos cataventos
– quando o galo cantar renegar-me-ás três vezes quando o galo
cantar –
Quando era criança antes de matar uma galinha
a minha mãe pedia-me para lhe prender as pernas e as asas
eu metia as mãos por debaixo da saia e prendia-lhe as asas e as
pernas com todas as minhas forças
O sangue jorrava da sua cabeça para uma malga com vinagre
e ficava depois muito tempo ainda a espernear no alguidar
o pequeno olho muito aberto…
Os meus sonhos estão cheios de cabeças de galinha
ainda escorrendo sangue
de milhões de asas de milhões de patas de galinha de milhões
de ovos
Quem vai bater esta gigantesca omeleta de
ovos
na frigideira celeste?
A minha alma é uma pequena alma entre biliões de outras almas
Que tamanho tem a alma dum mosquito?
Proclamo a minha solidariedade com todos os biliões de frangos
do planeta
que tentam em vão escapar à máquina de depenar eléctrica
com todos os carneiros cabras ovelhas avestruzes
– Eu sou um cordeiro inocente que se perdeu do pastor
e não sabe senão balir –
com todas as vacas
condenadas a comer rações impróprias e a um orgasmo gelado
No silêncio dos estábulos elas preparam a sua vingança
enquanto sonham com um prado verde de gramíneas
– e essa vingança será terrível –
Este é um testamento escrito com o sangue
do último dos genocídios
– e esse sangue é da cor do alcatrão –
tendo como testemunhas apenas as duas metades
do meu coração
De O Novíssimo Testamento e Outros Poemas (2012, Assírio & Alvim)
18.04.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, PontoZurca