[ontem]
ontem me meti a comer um bolo americano
não um bolo norte-americano
não um bolo conivente
um bolo de maçã não uma apple pie
um bolo de maçãs escuras
importadas da argentina
ou de maçãs fuji claras e novinhas
de todo jeito não eram maçãs colhidas à força e
à força enfiadas no fundo de formas
mordi maçãs do bolo de maçã
e reconheci não o cheiro da casca
mas a trajetória da casca
próxima a fronteiras invadidas
casas queimadas até o chão
caixas de mingau pisoteadas
nunca descasco maçãs
nunca como a polpa tirada com colher
como uma pessoa pequena e desdentada
uma vizinhança bombardeada por
maçãs foi o que reconheci
cravar uma maçã nas costas de alguém e esperar
que apodreça que ideia terrível!
pessoas seguem sem lugar para estar
e suas casas simplesmente não podem
ser maçãs
na cidade da “grande maçã” à espreita
estão funcionários prontos pra cumprir
ordens de extirpar cercas vivas
onde crescem aos montes maçãs
depois do bolo
de madrugada
não consegui levantar a tempo e vomitei em mim
restos apáticos de maçã
também maçãs inteiras com cabinho
maçãs desertoras do exército de maçãs
fiz que sim com a cabeça pra elas
e as ajudei em seu caminho de volta
porque sou uma rebelde de verdade
mas também porque sou muito enganada
pela ilusão de que é possível
comer e deitar
comer maçãs e logo depois deitar
Inédito
20.08.2022
Julia Raiz
Sérgio Milhano, PontoZurca