Passou um enfermeiro nem viu o jardim queimando
minhas amigas não me dão presentes elas me consideram
uma pessoa que não se importa com esse tipo de coisa
em vez disso me escrevem ameaças como poemas batidos à máquina
numa casa se uma telha cai isso já é uma sentença
tomamos juntas um chá de ervas chamado
“seu momento veio / seu momento passou”
minhas amigas anotam coisas a meu respeito
se viajamos juntas elas me emprestam livros com a palavra devoção
elas me tratam como se eu soubesse
da história de um fundo de um poço
um poço que é como o vão de um elevador
onde uma menina cai e ainda está lá esperando por resgate
eu tenho problemas de raiva preciso dizer a elas
que um serial killer é aquele que boceja muito
é aquele que diz “faço qualquer coisa contanto que seja divertido”
minhas amigas precisam entender que os meus segredos
os meus crimes infantis nunca vão ferir
os peixes os urubus
as hienas que transam entre si
minhas amigas são asmáticas
são espondilíacas são esquizofrênicas
meu chá é forte é a minha cabeça
se eu escrevesse uma história de terror nela
não aconteceria nada escrever uma história
amarrar uma pessoa vender um bezerro enquanto
ele espuma a corda na boca outra telha cai
sentimos ainda o calor da estufa em chamas
onde queimam mechas de cabelo azul
e chegam excitadas minhas amigas
para me fazer uma peruca
Inédito
21.08.2022
Julia Raiz
Sérgio Milhano, PontoZurca