[O anoitecer]
“O anoitecer é por toda a parte um grande serviço” (Ferreira Gullar), torna-nos enfim distantes, a cada um sua época, sua forma de discrição, os seus actos isolados, as sombras que ganham vida de sóis ausentes, esse alimento a partir das reservas, a noite como projecção do desconhecido, um território que cresceu de tantas migalhas e conjecturas, com uma paciência infernal, primeiro receoso, depois admirado desses sentidos que se calibram nesta zona autónoma, suspensa, florescendo como a imagem sobre a água numa transformação que não se aquieta, aqui os juízos degeneram, os corredores aparecem desfeitos, um quarto não liga já com os outros nem com o resto da casa, ou até do mundo, em vez da pauta para soar em conjunto alto, há como uma trepidação debaixo das palavras, em vez de coordenadas fixas as raízes levantam-se rasgando os mapas, nos espelhos vês a terra revolvida e espalhada por ali a “tua grave ossada à beira de um mar sujo e ignorado”, por uns momentos as luzes ao longe lembram um trânsito de feras, certos textos indecifráveis abrem as suas flores e percebe-se a extensão dos campos de silêncio aceso, as palavras perdidas retomam o rumo, cada um é lembrado do ponto onde estava como se lhe fosse devolvido o corpo, esse “clarão soterrado”, a noite diz-nos onde estamos face a nós mesmos, não há atalhos e ninguém escapa do seu canto, o pó levanta-se das coisas, ergue-se numa precária constelação, se entrámos a medo, somos agora nativos desses impulsos que percorrem toda uma cena de caça, capazes de um desequilíbrio de forças a partir de elementos mínimos, pingar de manchas pulsantes um espaço perfumado de ervas, sentir o odor misturar-se entre a fome e a morte tão próximo da fonte, como quem devorasse o próprio estômago, ou a língua, mastigar-se aflito, radiante, nu e mortal.
inédito
07.05.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, PontoZurca