E escrevia
Eu tinha grandes naus
aparelhadas na ribeira do coração.
– Fernando Assis Pacheco
Um desejo tão espúrio, escrever,
quando a monte tem andado tudo.
Nada do que importa está escrito, só repousa
a intensa sombra dos seus olhos
entre o seco arvoredo dos signos.
É tão estranho viver, tão roubado
às flores, ao sono, ao vinho, quanto mais
esta vaidade do que nunca teve brilho
mas empluma a linguagem
pelas falhas do que outros dizem.
Tinha passado anos a talhar madeira
alumbrada e rosa, quase viva, enquanto
no rosto a ilusória imobilidade
do fogo me dava a impressão de existir.
Sabia como recrudesce o tempo
em redor dos materiais — cada hora
uma navalha suja, cada imagem
uma jóia deletéria, o mar
lavrando pelas ondas a sua cicatriz.
Quis sofrer o mel, metáforas ocultas,
espécies rebentando-me por dentro
com os seus anzóis extintos. Nada mais
cretino, já que à vista começava a apodrecer
a infância, os frascos a estalar, a carne
rigorosa, uma arca desfalcada por invernos
e famílias vagamente nucleares.
E eu não via, eu queria estar à sombra e escrever
mulheres no esquema dos meus dias,
mulheres cujo coração se abate, o meu
estético sentido era o terror. Eu via e não via,
e de livros e mulheres só queria
erguê-los como grandes naus
e escrevia. Escrevo ainda,
qual aranha com as patas na penumbra.
Escrevo as coisas que das mãos
me caem, rachadas e celestiais.
De óculos escuros, dou-lhes o veludo
do outono, ou da fé o roxo manto.
Faço grandes passeios a pulso. De resto,
ando a monte como tem andado tudo.
inédito
15.05.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, PontoZurca