[A mulher subia as escadas]
A mulher subia as escadas, o rosto alheio
da chuva que a trazia aos patamares
A muito custo a mulher sustinha o rosto
enquanto subia até mim, que a esperava à porta de casa
com a minha mãe lá dentro perguntando-me
o que havia dentro da minha doença que tanto
tisnava as frontes de quem me ouvisse
cantar
A mulher pousava os calcanhares
no chão como uma estranha chuva
e desfigurava o rosto como se o desfocassem
muitas distâncias, um fôlego
suspenso no vidro
O rosto da mulher
era como morrer diante de qualquer paisagem, paciente
revelação
De dentro da casa, a tarde lenta e ressoada,
de dentro do tisno lento da minha carne sem dom
a minha mãe, desfeita de Deus e do pudor,
perguntava:
É isto um poeta?
De Alegria para o fim do Mundo (Porto Editora, 2020)
11.05.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, PontoZurca