[Estou entre a idade de Cristo]
Estou entre a idade de Cristo
e a idade com que Simone Weil morreu.
Tendo, como eles, a ampliar fenómenos,
os mitos ou o próprio mar encabeçado por um touro,
a minha roupa ao fim de um dia de uso
arrastando a areia de um qualquer abismo.
Mas se resisto às tentações é porque não as sinto.
Não as conto entre os tentáculos do dia,
a registadora máquina, a trituradora de papel.
Seriam anestésico de prazos ou da dor ciática –
logo eu que acredito em anjos, suas asas
de veludo esconjurado pelo vinho, logo eu
que não separo o coração da violência
couraçada de um tambor, não sinto.
O pecado, o fogo astral, a aliança entre vizinhos –
nada disto em mim figura, nenhum gatilho primordial.
Gostaria de ingressar nesse negro domínio, o entreunhas,
a carne grega, romana ou raiana dos homens,
o lugarejo, o sofisma
que colora à nascença e destrói o amor.
Quase-trinta-e-quatro, corpo-luva em ecléctico quarto,
e não sinto.
A baia espúria da fé tanto não cobre
as frias veias da razão como aparta
a visão do esterco, o sono fixo
de cavalos, operários ou amantes.
De Alegria para o fim do Mundo (Porto Editora, 2020)
14.05.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, PontoZurca