[Há beleza sempre mais difícil]
(Quando morremos, a audição é o último sentido a desaparecer. )
Há beleza sempre mais difícil
e legítima que a contida num poema.
As orelhas, por exemplo, o seu desenho
uma caligrafia botânica.
No filme, um homem foge aos soldados do imperador,
abriga-se no templo
onde o velho calígrafo lhe cobre a pele
de letras com o dom da invisibilidade.
Os soldados não podem vê-lo — só as orelhas,
poupadas ao palimpsesto,
e arrancam-nas
para fazer prova ao imperador.
No escuro,
com o linho do cinema sobre a pele,
eu peço: Minha morte,
faz de mim rizoma,
subterrâneo caule
de beleza rompendo dentro
do último sentido.
Entrego-te
as minhas orelhas desenraizadas,
faz delas
nenúfares
nas tuas águas paradas.
De Alegria para o fim do Mundo (Porto Editora, 2020)
12.05.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, PontoZurca