32 maneiras de dizer aqui
«Manhã muito cedo, ainda escuro lá fora, leio na Folha de São Paulo que um grupo de linguistas tenta evitar o desaparecimento definitivo do kawésqar, um idioma falado por apenas oito pessoas. […] Este nosso idioma curto-circuitado por dominadoras falas e línguas imperiais já não tem, contudo, o apego fundo à geografia que marca a difícil sobrevivência dos kawésqar, os nómadas que tanto se aventuraram em suas canoas pelo estreito de Magalhães. A notícia conta que, nessa demanda, nessa deriva, eles tinham 32 maneiras de dizer “aqui”.»
Fernando Alves em Sinais
Aqui é o mar nos meus olhos vegetais, cumprindo preces, uma casa em ruínas.
Aqui é um compasso de deuses apagados nas quatro cordas do violino.
Aqui é a conjugação de inventários no mundo, pretérito menos que perfeito.
Aqui é a bétula, o choupo, o salgueiro e todas as árvores ripícolas que não impediram Ofélia.
Aqui é um poço muito fundo, muito negro, muito mudo, salva-se a nuvem branca que o trespassa.
Aqui é a sombra que paira, que se demora, que se derrama dilatada sobre os pulsos.
Aqui é a luz que enfuna a alva nuvem até ao crepúsculo do meu regaço.
Aqui é um pássaro como um segredo, quase intocável a haste da duna e ainda um pássaro kawésqar nas margens ventosas dos canais do Golfo das Penas.
Aqui é um idioma que só oito pessoas do mundo falam e o idioma que finjo inventar para te dizer que há lugares assim, tão longínquos, que podíamos ser os dois os seus únicos falantes.
Aqui é tão só uma janela abandonada, vidros foscos, propósitos perdidos.
Aqui é uma varanda de jardins suspensos onde agora perdura o aroma cálido da madressilva.
Aqui ainda é Abril, quase Maio, como se houvesse um alpendre de Hopper à minha espera.
Aqui é a véspera sonâmbula de cada uma das vezes que senti que podia haver um travo, um trevo de promessa.
Aqui é o canto do livro que desdobro para deixar intacta essa mancha que é a esperança.
Aqui é o silêncio invisível, a penumbra das asas das borboletas.
Aqui é a perfeita imperfeição, o lugar mais do que comum, a rasura que não apago.
Aqui é a medida dos dias, o colapsar das noites, a vertente interrompida das horas.
Aqui é um relógio de sol, uma ampulheta de areia, uma clepsidra de naufrágios.
Aqui é a impressão digital da melancolia, subtraídas todas as metáforas.
Aqui é uma dança, a minha mão direita a querer-te quebrado pela cintura.
Aqui é a vertigem que vacila, no espelho Fausto sem os seus demónios escava relâmpagos.
Aqui é a súbita ternura de apagar o fogo para que seja «apenas um pouco tarde».
Aqui é a morte já acontecida, não há um amor para nomear na orla possível do poema.
Aqui é a solidão partindo de si própria, sem que o arrependimento matasse.
Aqui é o ofício do monólogo, ainda que as vozes falantes sejam oito.
Aqui é a névoa que se dissipa, revelando a orografia do medo e do milagre.
Aqui é o efeito, o fruto e a desobediência.
Aqui é a mão que não se perdeu em cada despedida.
Aqui é o coração sobrante, quase na última linha.
Aqui é a realidade como um vestígio.
Aqui é o que os outros dirão, no seu idioma, sobre este lugar.
Aqui acontece o infinito e o seu contrário.
Inédito
03.07.2022
Oriana Alves
Pedro Baptista, PontoZurca