[Não quero um poema à prova de bala]
Querias um poema à prova de bala
À prova d’ água
Pequeno e maneiro
Transportável como bagagem de mão
[…]
Um poema que não aceitasse devolução
Ana Paula Inácio
Não quero um poema à prova de bala,
impermeável, tamanho low cost para caber
no fôlego do riso, sílaba a sílaba reciclado,
após a passagem de deus ou da desinfecção.
Não quero um poema asséptico nem ascético,
estrofe lipoaspirada para vestir um número abaixo
de todos os desejos ou que coincida com gregos
e troianos, tempo de uma voz só, uma assimilação.
Quero um poema de peito aberto, submerso pelas
tempestades de noites como esta, a escrita a cobrir os
planos inclinados de síncopes e tudo o que é cicatriz
acumulando-se entre os dedos, desperdícios de oração.
Quero um poema que ouse ou que resista, consolado,
consoada de probabilidades acima da média, anacrónico
como o amor que ilumina as noites mais escuras e rouco,
rouco deste silêncio que é de tudo iniciação.
Quero um poema que não aceite devolução.
De Calendário do Advento. Colectânea de Poemas de Natal, in Manual da vida breve. Poesia reunida (2003-2021) ,(Officium Lectionis Edições, 2021)
30.06.2022
Oriana Alves
Pedro Baptista, Ponto Zurca