Nuvens dispersas
Tenho as mãos geladas, mas escrevo-te que é
Agosto. Junto ao mar, o dia amanhece sem neblinas,
com nuvens dispersas que se alinham de forma
perpendicular ao vento por efeito da orografia,
tal a vertigem que acrescento à paisagem, e essa
é a única condição que estipulo ao poema: que haja
nuvens onde te possas pendurar como tábua de
salvação para que quando colocares os pés na
terra os teus olhos continuem rasos de horizonte.
É Agosto e escrevo-te que o dia se desdobra
em calor como tu gostas e eu não aprecio. A
visibilidade é total mesmo quando o sol, dispersas
as nuvens, ofusca todas as palavras e só o silêncio
emerge como a única expressão que te interrompe
o olhar. Essa é a tensão da luz a revelar segredos e
mistérios, quando pássaros inesperados surgem
nos sulcos da escrita, na minha ou na tua pelo
menos um de nós saberá.
Escrevo-te que é Agosto e afinal já estou descalça,
como sempre deveria estar. A noite aproxima-se,
vagarosa, incessante, como um estado de expiação.
Surge tingida de outras nuvens que se dispersam
e lá vais tu, agarrado ao abandono que só essas
sombras te deixam ter. Num desses dias de Agosto,
talvez te toque sem que te prenda, e então ficará
concluído quase tudo o que intimamente hoje te
tinha a declarar.
De Boletim Meteorológico (2020, volta d’mar)
29.06.2022
Oriana Alves
Pedro Baptista, PontoZurca