A minha sombra faz muros tombar
A minha sombra faz muros tombar
sem estrondo, é bom que se diga.
A intenção não é causar incómodo,
apenas permitir a entrada do vento,
o mesmo que despenteia as mulheres
que passeiam no descampado
onde um dia alguém com muito tempo
livre para se dedicar ao ofício da construção
de muros resolveu erguer este
que se adiu a outros três, feitos por outrem,
e a um chão nascido da terra e a um tecto
caído do céu. E juntos fizeram casa
sem janela por onde se pudesse ver
as mulheres que passeiam
no descampado, prisão onde não entra
vento que despenteie nem mulheres,
nem crianças, nem ninguém que lá se diga
viver. Até porque além do muro,
dos quatro que, armados de chão e tecto,
se revestiram de bolor e ninhos de vespas
em ausente sussurro, não há vida
nem estrondo. A minha sombra fará tombar
estes muros, como fez tombar outros
– é por isso que existe este descampado,
onde passeiam mulheres despenteadas
pelo vento, onde um dia correrão crianças,
a trazer o estrondo que os muros
tombados pela minha sombra
nunca provocaram.
de A norte do calendário (2022, Medula)
31.05.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, Pedro Baptista
PontoZurca