Emilio Salgari
O homem nu viu ao longe o que estava a acontecer, mordeu o lábio até fazer sangue, bebeu do seu próprio sangue, mordeu mais o lábio até um rio de sangue lhe escorrer pela garganta abaixo, até saciar a sua sede de homem nu, até ficar sem lábios onde pudesse pousar o filtro dos cigarros, e então começou a mastigar a língua, o homem nu mastigou vorazmente a língua, enquanto mastigava a língua proferia umas palavras muito desarticuladas, uns sons que ninguém entendia, porque ninguém pode entender um homem nu sem lábios e de língua mastigada, mas também não fazia mal, pois ninguém entendia o homem nu quando ele tinha língua, pelo que não fazia mal não o entenderem agora que ele não tinha língua, o homem nu comeu a própria língua, emudeceu, já ninguém o podia acusar de andar para aí a mentir, mas ele mentia, sobretudo a si próprio, e o ter mastigado a língua vinha de andar a mentir a si próprio sempre que via o que estava a acontecer ao longe, o que acontecia ao longe com ele ali a mastigar-se a si próprio, a autodestruir-se como um animal feroz, um animal selvagem, um animal impotente, um animal capaz apenas de se comer a si próprio, com o sangue a verter pela boca, escorrendo-lhe já pela garganta, pelo pescoço, pelo peito, deixando uma enorme poça de sangue a seus pés, uma poça de sangue tão funda que ele próprio mergulhou nela, o homem nu mergulhou na sua profunda poça de sangue e nela foi encontrar muitas coisas novas, uma infinidade de flora subsanguínea e um espécie de peixinhos que nadavam em torno dessa vegetação, tal como o homem nu, que ali andava mergulhado, no seu próprio sangue, sem boca, sem lábios, nadando cada vez mais fundo entre os peixinhos que trazia dentro, um cardume de peixinhos protegendo-se de anzóis reais e imaginários, acoitando-se na sombra da vegetação subsanguínea, e assim se encontrou consigo próprio o homem nu, nas profundezas do seu sangue, enquanto ao longe uma mulher nua mordia também os seus lábios e igualmente mastigava a sua língua, formando uma poça de sangue tão grande quanto a poça de sangue onde o homem nu havia mergulhado, uma poça de sangue tão extensa e tão profunda que, às tantas, se encontrou com a poça de sangue do homem nu, as duas poças de sangue tocaram-se formando um vasto, profundo, revoltoso mar vermelho, e a mulher nua mergulhou na sua poça de sangue, numa poça de sangue que era já a poça de sangue do homem nu e da mulher nua, que era já o seu oceano, e nessa poça de sangue a mulher nua foi encontrar os seus próprios peixinhos, a sua própria flora, mas também a flora e a fauna do homem nu, e de tanto explorarem os dois o seu sangue, sem se aperceberem, a princípio, que exploravam já o sangue um do outro misturados num só, o homem nu encontrou-se com a mulher nua, os dois sem lábios e sem língua, olharam um para o outro, espantaram-se com o que viam, viam-se a si próprios no fundo do sangue um do outro, e debaixo do sangue um do outro o homem nu e a mulher nua uniram-se, uniram-se um ao outro, com dois cardumes de peixinhos misturados ondulando em torno da nudez unida, e muitas plantas abanando os seus finos e maleáveis troncos à passagem dos peixinhos, à dança do homem e da mulher nus, sem lábios e sem língua, unidos em silêncio no fundo do seu próprio sangue, um sangue que era toda a música possível, todo o som possível, toda a palavra, todo o verbo, o silêncio ruidoso do sangue que os unia e embalava e provocava uma estranha dança, enquanto ao longe tudo continuava a acontecer, as árvores cresciam, afundavam as raízes na terra, davam frutos, serviam de pouso a pássaros que ali faziam ninho sem a mínima ideia de que no fundo do mais vasto mar vermelho, um mar de sangue, viviam um homem e uma mulher nus, unidos sem lábios nem língua, unidos pelo silêncio, perto um do outro, longe do mundo.
De Suicidas (2013, Deriva Editores)
Oriana Alves
Sérgio Milhano, Pedro Baptista
PontoZurca