Esta noite gritam-se geometrias
Esta noite gritam-se geometrias
e escalpelizam-se lições
de ternura e canonização.
Há um vulto que se esconde
por detrás da árvore
onde gravo os nossos nomes
a toque de lâmina
convicta. Uma perturbação
setentrional desenha-se
nas costas de um mendigo e
o carreiro de formigas goteja
alaúdes sobre as dúvidas de
uma clareira invisível. Acredito
na treva com a desfaçatez
de uma serpente errante, caída
do estanho, perdida na raiva,
ebulindo-se no caldo
das semicolcheias.
Finto a madrugada.
Descerro cortinas e largo a rede
no mais profundo de todos
os abismos sonhados por crianças
mancas e um Saturno pubescente.
Devagar se foram conquistando
as cidades de prata e fel,
cantadas por jograis vestidos
de sombras aquáticas, refrações
empedernidas e cores sem nome.
Ergo a mão esquerda, exibo
linhas da vida e do amor –
e da sorte que é tê-las em par -,
mastigo gerberas
e peço o livro de reclamações.
Há um coreto de pedra e ferro
enferrujado onde gostaria
de terminar os meus dias.
Não tenho qualquer interesse
em impedir uma inundação.
Se me deixarem, correrei
até ter sol e sombra atrás
de mim, o paradoxo de toda a
Criação, sem pano para mangas.
Antes de ser silêncio, o silêncio
era peso. Depois, calou-se.
Nessa manhã, choveram pétalas
– um fenómeno de organização
e esperança no progresso, profetizado
por gente degolada e entregue
à justiça, por esta ordem,
ou inversa. Esta noite, gritarei
redondo, sem vértices na voz.
de A norte do calendário (2022, Medula)
03.06.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, Pedro Baptista
PontoZurca