a importância do pequeno-almoço
qualquer mulher sabe que
é preciso manter as tropas:
passar a ferro as fardas parir herdeiros esfregar o chão / de
joelhos o sarro sai melhor
quem mais poderá explicar às crianças a ausência
do soldado do empregado fabril do político fervoroso que põe
o pão na mesa
se o sexo é político, imagina as lides da casa
lavar à mão as manchas de vinho / sémen / sangue
fazer a cama quando vazia
reunir no prato os nutrientes necessários
para a capitalização do pai adúltero
depois de fazer o pequeno-almoço
as mulheres-âncora atracadas à enseada
assistem em silêncio à partida das armadas de dom joão, o
primeiro / o anterior / o pai deste
para que agora – isto não é novo –
pelo menos quinze mil machos sigam audazes.
a ideia é a de sempre:
queimar florestas / rapinar minas / estuprar indígenas / baptizar
terras que já tinham nome
reproduzir hospícios e quartos forrados a papel de parede amarelo
enterrar a semente bem funda no colo do útero
e aos poucos gerar novos e delicados manequins de mãos calejadas
deixar que a geração anterior ensine a seguinte a fazer o café
(atenção. não se faz café de qualquer maneira, é preciso formar
uma pirâmide de pó, não deixar que a água toque no funil, não
ligar de imediato na temperatura máxima, dar-lhe o tempo
certo de ebulição, mas continuando,)
vertê-lo quente na chávena de manhã
sementar esse pão vaporoso na mesa milagrosamente limpa
colher fruta fresca valorizar a louça lavada
não regressar nunca
à sodoma abandonada
porque nessa
o café já esfriou
quem faz o pequeno-almoço
sabe de tudo isto
retorna a casa só e as mãos
sempre invisíveis
costuram dores como contas de rosário
nos dentes e figos abertos no lugar dos lábios
só quem come o pequeno-almoço
tem a boca demasiado cheia
para perceber o fundamental:
é que sem elas
o mundo não chegaria sequer
ao meio dia.
De A Importância do Pequeno-almoço (Fresca Edições, 2020).
13.06.2022
Oriana Alves
Pedro Baptista, PontoZurca