Contraponto para Isabel Aguiar
(suicidou-se em Novembro de 2021)
O rosto é que é a máscara.
É preciso inventar qualquer coisa para poder tirar o rosto.
É preciso fazê-lo depressa, antes que se acabe o tempo.
Colocar chapeuzinhos de sol nos pulsos e nos tornozelos.
Uma saia de palha, como nas tribos da Guiné.
Máscaras rectangulares, como dançarinos do Mali.
Que espanto, o rosto no espelho.
Que estranheza.
Teria três, quatro anos?
Perguntava: é isto?
Esperava talvez que fosse outra coisa.
Coala, tigre, lagarto, borboleta, flor.
Tudo num rosto parece tão desavindo.
Os olhos, o nariz, os dentes, o cabelo, as pestanas, as sobrancelhas.
A boca por dentro. As amígdalas.
Será que conseguirei um dia amar o meu rosto?
Em fotografias que já não são as do meu rosto actual,
então de súbito sinto que aquilo era eu.
Mas o tempo voa.
A consciência de ser alguma coisa está sempre desfasada.
Talvez um dia depois de morta
olhe para o meu último rosto muito enrugado e suspire por ele.
Teremos certamente um ou mais rostos por ano.
Talvez a maior estranheza seja não ser outra coisa.
Um pássaro.
Uma chita veloz. Um raio de luz.
Uma pedra. Uma nuvem de pó.
Será a memória filogenética
ou antes a possibilidade de ser realmente qualquer coisa mais plástica?
Uma expressão mais abstracta e acidental da vida?
Talvez seja só a simples sensação de ter sido um embrião no ventre materno
que em tempos abandonou as guelras e em que as mãos,
antes de se separarem os dedos, foram barbatanas.
De Nada existe que tenha sido uma lembrança inédita (livro inédito, escrito com Isabel Aguiar)
09.04.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, PontoZurca