albert camus
se alguém tivesse me dito que seria assim
eu não teria acreditado
guerras civis
crise econômica
fim do mundo
eu e você
sobrevivemos a tudo isso
entre as nossas guerras
civis
as nossas crises
econômicas
os fins
dos nossos mundos
as separações
eu
no meu mundo
você
algures
se alguém tivesse me dito que seria assim
eu não teria acreditado
vinte anos
algumas guerras
aquecimento global
um golpe
outro golpe
eu e você no mundo
e ainda assim eu não teria acreditado:
sobrevivemos à adolescência
a maior das guerras
pais mortos mães
e eu não teria acreditado
se alguém tivesse me dito que seria assim
eu teria pensando
essas coisas só acontecem nos filmes
nas novelas
e nas novelas
eu nunca teria acreditado que apesar dos silêncios
desse dedo indicador na boca
sobreviveríamos
aos golpes
um
e outro
e um
ao outro
perdemos os melhores amigos
nossos melhores amantes
e apesar de tudo
ficamos
eu e você
no mundo
inabaláveis
inconcebíveis
sobrevivemos à morte
ao exílio
e nem isso
por abstração
ou vontade
nos termina
eu e você
existimos
um projeto impossível
incompleto e,
ao que parece, eterno
vinte anos é o tempo
de vida dos castores
dos porco-espinho
dos pardais
e de outros projetos que desconheço
e como eles
aqui estamos
na cidade
vinte anos depois
esvaziando copos
sem conseguir pagar a conta
perdendo o último metrô
mas aqui estamos
e não desistimos
apesar de tudo
você vai pro mundo
eu vou pra casa
separados por uma bússola
uma cidadania
um passaporte que não compartilho
mas unidos pelo desejo de não morrer
nem de estar
separados
eu te celebro
tua juventude
a que aparentas e a que trazes
contigo
a doçura da qual nunca fui destinatária
mas na qual confio:
eu sei que ela está aí
te levo comigo
como sempre te trouxe
nunca não estiveste
numa tatuagem que não era pra você
mas que devia ter sido
te celebro
como nunca te deixei de celebrar
e te agradeço
todos os dias
por tudo
foste o primeiro homem
e ainda és
De 13 nudes (Edições Macondo, 2019)
30.07.2022
Adelaide Ivánova, com recurso a voz sintetizada nos poemas "A mulher casada" e "os orgãos inúteis".
Pedro Baptista, PontoZurca