Aliterações
Um poema é
sobre um ferro que emperra.
Um poema é
sobre um albatroz que erra
sem destino onde pousar as grandes asas.
Um poema é
sobre lídimas manhãs e mínimas ondinas.
Um poema é
o crepe sobre o féretro.
Um poema é
pode ser outra coisa
que não esta frustração diária e crónica,
o mento anarco-sindical, os tampões
da raiva e da rebarba.
Um poema é
de repente a bela plaina do oceano
que um pachorrento ferro lhe engome
transatlântico o vinco daquela dobra além
e o sol um gânglio no pescoço da tarde.
Um poema é
sobre mãos sobre mãos
sobre irmãos que são amigos
e amigos que hoje não se são.
É sobre um assado que se perfuma na perfeição,
é sobre eu e tu e nós no parque
ou no cinema ou passeando na rua
com popcorns ou frites de l’Eugene
tirando a felicidade aos poucos do pacote,
consultando as horas do último bus.
Um poema é
a balsa que se chora no Egeu,
a trágica ampulheta a toda a hora.
É coser o cílio ao sobrolho
com os fios das pestanas
e apagar para sempre a fina dor do que se vê.
Um poema é
querer o mundo e darem-nos Sto. Ildefonso
e ver em Sto. Ildefonso o mundo que se queria
e afinal sorrirmos sobre lágrimas
e ouvir as últimas, a pilha já esgotada,
o transístor que se morre…
Tirarmos-lhe a função às sacudidelas
como a um ente querido que se abana
a quem negamos a extrema-unção da abdicação
ou o soldado que espreme o seu amigo
e o levita de uma cama de campanha.
Um poema é minha mãe, és o meu porto.
Um poema é não me deixes ir ao fundo.
E é tão ingente e tão distante o mundo
que, meu pai, ensina-me a andar sobre águas,
a mão da fé não tires, não
meu pai do céu, meu pai do chão.
Um poema é
a medida de envelhecermos,
tendermos a gostar de flores, de pássaros, de.
Um poema é,
como alguém dizia, primeiro o ambiente,
depois o serviço, por fim a comida.
Um fascinante brilho vem das tuas mãos,
Javalis, châteaus, tâmaras, acção.
Sentar em plásticos tronos
a contemplar a equidistante espera.
Um poema é
um acrílico, um gavetão, um
eglefim dos pobres e o vitelo dos toffs.
Um poema é
ser rapaz de há uma eternidade atrás.
Um poema é
façamos algo de físico
como trepar àquele freixo, beber daquela água,
entrar no elevador após um dia de consumição,
dependurar o corpo, os ossos, o estandarte da roupa.
Um poema é
a tristeza da roupa acamada
guardada no furgão antes da feira.
É o sono dos justos, a marmita dos rentes.
Um poema é
a monção no vazio do alto-mar,
um coração que abre como uma romã,
a alma da uva no vinho, a renda da manhã
que derrama a luz nos pátios do sono.
Um poema é
não tenho força para a revolta,
morreu-me o cão, a pátria, a absolvição.
Um Poema és.
Um poema é
após o fim,
depois da morte,
a última siesta antes do corno fatal,
antes do último sopro sobre a terra
na vibração da cabra
combalida sobre o lenho no casco.
Era sobre a morte após a morte
depois do fim.
Um poema é
o fim depois do fim
após a morte, antes da terra.
De Cães de chuva (2021, Assírio & Alvim)
13.04.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, PontoZurca
E-learning Café Botânico e Teatro Carlos Alberto