Amsterdam Central Station
Não olhes tão romanticamente os corpos
escandalosos das mulheres vadias.
Por detrás desses corpos está uma empresa
para a qual não terias músculo.
A ti convém a reforma dos desagravos,
um salário honesto,
um mealheiro de testemunhas vingativas.
Mesmo desempregado, convém-te o escritório.
Escreve um livro que denuncie o lixo
reciclado do mundo em que vives,
procura uma editora que comunique ao mundo
todos os mas na página do suplemento,
dedica ao presidente de uma qualquer comissão
incumbida de vistoriar os deves e haveres do coração
os papéis dessa peça representada no palco das funções,
dedica-a ao crítico que escrever trata-se de,
responde-lhe trate-se, dedica-o ao comentador
que disser os portugueses, oferece-lhe um espelho,
um espelho partido, uma experiência única,
uma disponibilidade absoluta para os intervalos do ódio.
Eu agora não estou para acertos, apetece-me amar
os corpos que dançam sob a chuva, lantejoulas húmidas,
os mamilos enregelados das bailarinas, o fio dental,
a nádega, a máscara, apetece-me olhar romanticamente
os corpos escandalosos das mulheres vadias.
O meu coração anseia por pouco mais
do que esse teu samba. Põe os saltos altos das putas
e sapateia-me os olhos, abana-te ao ritmo do vento
e desanca-me as mãos dos bolsos.
Quero o peito cheio sem o carisma dos heróis,
quero o gesto rasteiro do pandeireiro.
Ó linda, tu não sabes, tu não vês,
mas o meu tesão é todo ele uma interrogação,
é a alta-costura da tua nudez,
é esse negócio de nos virmos pelos olhos
e de nos vermos pelo sexo.
Dança para mim sob o gelo que o céu dispara
contra as plumas, bebe o veneno que as máquinas
fotográficas atiram para cima da pele, sonha um cartaz
com a tua imagem espalhada pelos cartéis da cidade,
esquece o fato de seda, queima a gravata,
o sapatinho de vela, vem antes à vela para dentro da folha,
salta da montra, da vitrine, do cubo,
sem canetas voadoras ao preço de uma refeição,
não abrandes, sê o meu furacão,
o meu terramoto 8 na escala de Richter,
preciso tanto dos teus seios, da tua dissimulada alegria,
do silicone dos teus lábios,
preciso de tudo isso como um filósofo precisa de ideias
e um poeta de musas e um homem de filosofias.
Faz a barba, veste as plumas, pinta os olhos,
vinga-te. Agora mostra-me essas mamas
a saltarem do decote, dobra-te sobre o decote,
dobra-te sobre a vontade que tens de exibir as mamas,
dobra-te sobre as mamas, dobra-te sobre o gesto
de te dobrares e não te inibas. Neste período todas as multas
são perdoadas e o excesso começa logo em trazermos
corpo na roupa. Sê a minha alegria breve,
o meu fantasma de trazer pelos sonhos, o meu passeio
grátis de gratidão, o meu réveillon antecipado,
o meu presépio carnívoro, a minha santinha que chora
pelos poros todos os males do mundo, todas as guerras,
todos os atentados. Espelho meu, espelho meu,
haverá lá disfarce mais divertido do que eu?
De Estação 2012 (2014, Mariposa Azual)
23.06.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, Pedro Baptista
PontoZurca