Folha de sala para Sargy Mann
numerosa a luz que faz no lugar
do pintor cego
emboca pela janela do tacto empurrada pelo vento
sinuosa branca
e com as mãos o pintor modela-a compõe
aquilo
que não viu
e no entanto as mãos percorrem as alturas
todas
aqui uns joelhos as ancas mais ali
a cabeça de um corpo adentrado na memória
a lembrança do mar
ao fundo da varanda
a mulher guia-o pelos corredores do vento
ele guia a mulher pela certeza
escura de alguma evidência ou pelo isento
luzeiro que um ser pode
fecharam os reflexos aparentes
para um e para outro o clarão tornou coisa que atravessa
a retina do coração
a cor enrubesce numa acção decorada
no escuro
o que ontem foi manifesto hoje cai no principal
ao dizer azul
as células do azul encharcam a superfície do lago
o pintor vê aquém da recordação
e para lá do nutriente basilar da cor azul
cosida que está ao seu código
sensorial
o pintor reconhece a visão depurada do azul
a estrutura do azul
a paixão do visto cariou
uma ideia de visão se mistura e desfaz
no fluido do olhar-se
o pintor verte o que a visão não creu
expõe as variáveis brancuras da cegueira e do assombro
o corpo que já viu come desse comércio
mas ao corpo que cegou preenchem-no o oco
de outras formas
quem vir por fora estas pinturas é cego de as não
ver onde perduram:
diante do que em si é através
in Ágil mesmo nu: um sobretudo nos trópicos (edições Macondo, 2021)
10.11.2022
Nuno Morão
Sérgio Milhano, PontoZurca