[hei-de lembrar o timbre de quantas]
hei-de lembrar o timbre de quantas
casas
esse silêncio electrodoméstico que têm
as divisões quando escurece
o número de degraus a porta comum
do prédio modelando a escura matemática
dos sigilos
hei-de lembrar a luz choca
de cada saguão
o tilintar de copos talheres os gritos
anónimos nas traseiras
a velha nespereira dos quintais
que perde folha e fruto sobre o telhado
das garagens
o desejo turvo em que medram as famílias
colonizadas pela televisão
mas hei-de sobretudo bem-dizer
o exacto momento em que o quadro
eléctrico dispara e extingue o que constitui o serão:
esse brilho plasmado pela narrativa
que entretém
alguma coisa dentro de nós
se levanta põe de pé toca o agora
(morada mais encoberta)
até alguém acender o isqueiro dos sentidos
correr a devolver à casa o tangível
in Ágil mesmo nu: um sobretudo nos trópicos (edições Macondo, 2021)
12.11.2022
Nuno Morão
Sérgio Milhano, PontoZurca