Presque Rien e [Impressão directa do esplendor]
Presque rien
Diz-me que renasço
como as pequenas flores
diz-me… diz que é possível
nascer de novo agora
em Maio e em Junho
como breve espiga,
margarida, malmequer.
Diz-me, vida, que não vou
mais ser gente, não mais,
apenas flor… e das flores
a brevidade e quem sabe…
a volta eterna.
[Impressão directa do esplendor]
É de noite agora neste momento
em que dou de caras com o esplendor.
É verdade.
Em quase tudo, se paro,
encontro este diáfano que se acende:
o esplendor.
Nesta grua que se eleva
no estaleiro dos prédios em construção
entre andaimes, tapumes e holofotes,
nesta grua
que se eleva
nas cores difusas e nocturnas
como um fantasma
e até nas cruzes em tinta branca
que marcam os vidros por acabar
(das janelas por acabar)
há uma fala que diz:
proibido
proibido passar
como alguém que marca
um sinal
aqui
no diáfano
da penumbra iluminada
da noite
onde canta o esplendor.
Infinito. Frio. Monumental.
Em que há uma bondade…
uma bondade…
não sei se distante de tão grande,
se fria de tão infinita.
Bondade imensa e não humana
que o pensamento não toca mas sente.
Onde está o erro de lógica
com que sempre te penso, Deus?
Onde está a dificuldade
com que não consigo pensar-te?
E no entanto sinto-te.
Tenho saudades, tantas,
tantas, tantas saudades,
saudades agudas
do que estou a ver agora.
Porque o que vejo é tão grande
e tão belo que me dói
a ideia de quando aqui já não estiver.
Se eu pudesse gravar tudo o que vejo.
Não em palavras, nem películas.
Não.
Se eu pudesse gravar para sempre
talvez numa outra alma infinita tudo o que vejo.
…
Hoje dei de caras com uma fotografia.
Era uma rua de Coimbra.
Olhei para essa fotografia
e houve qualquer coisa em mim que disparou
como um cavalo em corrida,
como uma estrela cadente.
O que foi?
Há tantos anos atrás
(lembrei-me!)
calcorreei essa rua todos os dias
para ir estudar piano
num quarto que não era meu.
Que linda rua, toda forrada de prédios antigos
e imaginativos, irregulares, suaves.
Repletos de curiosos e cândidos detalhes.
O que me aconteceu?
O que foi?
De Quase Nada, de Artur Borboleta (livro inédito)
08.04.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, PontoZurca