Três andamentos para Mário Botas
Em casa não tenho espelho de corpo inteiro. Por isso esta manhã percorri as ruas à sombra dos plátanos e detive-me frente à montra de uma loja. Aproveitei para me mirar com cuidado e ver se estava apresentável para aqueles que comigo na rua se cruzaram. Sinto-me sempre um pouco mais capaz para enfrentar o mundo depois deste pequeno ritual. E enquanto me mirava reparei que alguém o fazia também. Disse-me bom dia com um aceno de cabeça acrescentando — cada qual tem o espelho que merece e vê nele exactamente aquilo que quer ver — para logo num instante desaparecer.
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Uma mulher fixa a sua presença na vasta paisagem. Não sei o que faz ela aqui mas sinto que me observa. Não consigo ver a cor dos seus olhos. Pressinto apenas que são azuis como o rio que atrás de si corre. Ou será o mar? Então por que razão disse rio? Pouco importa. Poderia isso sim passar o dia com ela. Talvez ganhasse coragem e lhe lesse alguns dos poemas que guardo no fundo das gavetas para ocasiões como esta. Não sei se estará interessada em ouvir versos. É sempre preferível o silêncio.
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Para sermos exactos a vida nada tem de original. Daí talvez a arte. E daí talvez a vida. E assim sucessivamente. Como diz o artista.
De Falar dele no céu de uma paisagem – poemas para Mário Botas (2021, volta d´mar)
19.06.2022
Oriana Alves
Sérgio Milhano, Pedro Baptista
PontoZurca