o soldado soviético
observa-me com o seu ar desorientado
tenta manter a compostura
mas tudo nele
a barba ainda por surgir
as olheiras de quem não dorme há muito
o casaco demasiado grande
para o seu corpo esguio
tudo nele
podia ser o meu irmão mais novo
quando era ainda mais novo
sem que tivesse pedido
para estar ali
muito menos
teria pedido
para ver o alemão
da zona ocidental
morrer em cima do muro
com um tiro na virilha
que talvez tenha sido ele a atirar
tudo nele diz
eu não pedi para estar
aqui
mas foi para
aqui
que me mandaram
parece-me que ainda tenta sorrir
não lhe suportariam
tanta ausência de glória
há um ligeiríssimo esgar
do lábio superior esquerdo
mesmo antes das sardas
contra a pele pálida
uma quase tentativa
de orgulho
mesmo depois de ter ouvido dizer
por favor por favor salva-me
mesmo tendo observado
esse homem tempo demais
para poder esquecer a cor
dos sapatos que lhe caíam
ou o sotaque específico
dos palavrões
que dizia enquanto
se borrava muro abaixo
querer tirá-lo de lá
mas dizerem-lhe
está quieto, a guerra
está à distância
de um tiro a mais
dois dias seguidos
esse soldado com quem me cruzava
todos os dias
olhava-me de longe
enquanto fazia o caminho
casa-trabalho
nunca vi morrer um homem
ou retirei um civil
de cima de um muro
sabendo que poderia estar vivo
fosse outro o ângulo
em que o arame farpado o agarrou
ou outra a direcção
para onde os soldados dos
dois-lados-da-barricada
optaram por não olhar
por tudo isto imaginava
que ele percebesse do mundo
mais do que alguma vez
eu entenderei
e juntos líamos o desapego
dos dias em que tentamos
sorrir para a fotografia
mesmo sob a total ausência de
glória nos pequenos gestos
sobre tudo isto falava com ele
como se fala com um cristo
numa igreja em ruínas
ou com um gato
numa casa onde ninguém mora
há muito tempo
ele olhava-me de longe
explicava é só mais um dia
olha que hoje ninguém morreu
dizia o muro às vezes
parece nunca ter caído
mas só podemos esperar
pelo último turno
e então imaginava-o a voltar a casa
depois de lhe tirarem essa fotografia
e a porem no ponto mais alto
da rua a que ele nunca voltaria
tirar primeiro o chapéu
e antever-se o cabelo cenoura, raspadíssimo,
depois desabotoar o casaco
ser-lhe difícil libertar-se
do primeiro botão prateado
e do peso de todas as insígnias:
as estrelas soviéticas
a foice, o martelo
o número um a destacar-se de todas elas
depois a gravata escura,
a camisa verde tropa
despir lentamente
a pele, suada de nervos
para a vida inteira, alguma irritação
nas axilas e nas zonas de fricção
apesar da camisa de linho
supostamente impermeável
finalmente a alma
pô-la num cabide
no local mais fresco do quarto
olhar para ela longos minutos
perceber que ocupará menos espaço
debaixo da cama
dar um trago na vodka
afinal dois, mais dois
talvez um barbitúrico
talvez mais do que um
toda a gente lhe ver a cara:
ninguém mais
saber-lhe o nome.
De Photoautomat (Enfermaria 6, 2019)
11.06.2022
Oriana Alves
Pedro Baptista, PontoZurca