Manto ígneo
Sob o mar o tempo movendo placas rocha sobre rocha
sinalando derrocadas no decurso perene da matéria
soterrando conchas dá a ver, em escala menor
do que o olhar poderia sequer supor, somente
imaginar estado de perceção mais apurado,
cronologia, disposição fóssil disruptiva perfeita
no caos contínuo que refaz planos afasta continentes
subleva montanhas entrando alguns centímetros
precisos cada ano para novo lugar, pois sob o mar
pode ver-se o trabalho incessante da Terra
movendo seus mantos em qualquer direção
cardinal, movendo seus fogos acima abaixo
além de diagramas ou desejo mais preciso,
parecendo até propor folguedo uma charada
aos sábios que recolhem dados calculam
probabilidade avaliam causa medem
produzem factos edificam paradigmas isentos
no logro da episteme possível perfuram solos
com grandes máquinas categóricas recolhem amostras
lendo milhões de microscópios compõem tabelas
Assim te escuto
toda entregue a teus gestos
à terna ironia com que flirtas minha ignorância
criando cenários paralelos filando hipóteses
para partilhar teu furor de saber reverente
demanda do princípio da eternidade
direito ao mistério das coisas — a mão
de Deus escrevendo infinito labor
A perfeita lentidão dos milénios resolvida
num sismo abalando a perfeita lentidão
das partículas dançantes cumula cronografia:
no espaço as paisagens marinhas elevam-se à luz
sob o claro céu o fundo, enquanto invisível
discreta constante corrente suga para si
os continentes ordenando mapas agregando
matéria corpuscular cujos pesados protões contam
novos ciclos compondo estruturas ao cristalizar
Pouco sabendo seguimos tateando
procuramos terra firme prova
padrão pedra onde pôr o pé
para suportar o susto
— conquanto, todos cada um perdidos
no furor secreto que nos rasga a meio
amiúde, escrevendo direito sabemos
já o desvio que tudo deita a perder,
cremos traço retilíneo rota
mental inviável fundamento fuga
ao negrume ao vazio especular —
esta elipse sombreada
pousada em papel pautado
indicando rotação ponteiro setas
limiar do espaço-tempo —
por isso, o diálogo elude lapsos
brechas por abrir ainda todo
o enigma do porvir na criação
complexa no sussurro das águas, as marés
circunscritas por instrumentos de navegação
proximidade e assombro, por isso
persistimos desenhando escalas
correspondência valores padrão
(seguem os leigos meras linhas
prazerosas pondo o dedo na barriga
das ondas aplanadas quebradas
diminuídas por aproximação lógica)
— poderá sempre crescer o espanto e o temor
Mas sob o mar a subducção perfura perpétua
placas continentais, a crosta afinal terreno
móbil resvaladiço içando fraca barreira
ao avanço líquido, a cada instante mesmo
antes de tal ser percebido sendo o tempo
ele próprio eterno jogo refluxo
grata ilusão medida impelindo
desejo à nossa passagem apontando
direção conferindo ordem àquilo
que, enfim, feitas as contas, vai
além de matemática pura, para lá
de porquês, longe de qualquer suspeita
— o mistério amplia suas variáveis
seguimos nós apartados em busca de visão
em movimento
A subducção reúne, pois, placas
ensaia limite na dança das águas
ilustra provérbios empurra
montanhas fossas abissais
sobre o manto ígneo longo
vestido de fogo corrente
com que a Terra saracoteia
pelo espaço fora
Diana V. Almeida
de Cosmos e casas (2021, Urutau)
27.03.2022
Oriana Alves
PontoZurca