Madame Bovary
Porque seguiste o abismo até ao fim
como homem livre e
desdenhaste o teu marido inepto
excedeste Rodolfo em alma
riste da falsidade de Leão,
combinando em simultâneo
o ângulo do chapéu
com a linha dos lábios
porque
tua botina de verniz
pisava sem temor
os prados até
onde ia o coração,
ou madrugada afora
deslizando
do leito conjugal
onde o corpo alheio
do outro dormia ainda
porque
mesmo no mais sórdido enredo
foste brava e gozaste rosto rasgado
recebendo o saque de pirata
com o glamour da grande dama
querida Ema,
tiveste de morrer assim.
Por que diabo
te calhou um pai humilde uma mãe morta um marido tolo
um admirador cobarde um amante sem escrúpulos
uma vida medíocre sem sustento?
Jogaste a mínima fresta do enredo
entregaste a vaidade ao usurário
a preguiça corrompeu a vocação
apagou-se a palavra.
Má fortuna te fez
bela, sequiosa
pouco dada ao compromisso
desvairada, má fortuna
fez de tua palidez estandarte
arma dançante.
Tuas
luvas de pelica fina, teus malotes de viagens, os teus lenços
ou teus súbitos desvios piedosos
santa Ema
revolta em êxtase de luxo
Ema que na palavra vê apenas
o mais que não pode dizer
o corpo só
ao toque dos olhos abrindo
mais rápidos desejos.
Se naquela tarde em tua casa natal
quando cosias na frescura da cozinha
raiada pelas frestas de luz
era Verão e entrou Carlos,
visses melhor
além de flores secas e outras recordações do colégio ao fundo da gaveta,
se inventasses nova história e não temesses
nem fosse teu corpo biombo.
Se atentasses nas contas, nas cartas, nos deveres de esposa e mãe
nas toiletes, nos recibos dos doentes, no ciúme da sogra, nos costumes da vila
nos desígnios da ficção. Se a hipótese mesma resgatasse
o horror do teu suplício teu cadáver trajado a noiva de domingo.
Mas foste teimosa, arrogante, bela de mais, mentiste
sabendo bem que a heroína é moldada ao destino
trágico. Olha, devias ter pensado duas vezes, ser
modesta virtuosa menos expansiva
podias ao menos ter acabado as tapeçarias tocado piano com graça.
Se fosses pequena, ainda que medianamente cultivada,
rigorosa nos empenhos atenciosa por devoção educadinha
poupavas os nervos, escusavas de ser espiada por vizinhos
leitor e narrador
se tivesses princípios evitavas ser puta, eras feliz
deixavas crescer a piedade davas à luz meninos rosados
regavas as flores ao entardecer olhando os campos:
para ti bastaria por moldura a janela.
Fosses tu menos exigente, menos atormentada,
Ema, tudo teria corrido pelo melhor.
Mas era tarde de mais
Já o sabia o leitor avisado.
Diana V. Almeida
de Cosmos e casas (2021, Urutau)
31.03.2022
Oriana Alves
PontoZurca