Perder a vergonha

Num ano de muita luta dos professores, a professora de português Vanda Rosa é a convidada de Bárbara Aparício, Luana Martinuzo e Alexandre Dias (via Whatsapp) no primeiro episódio do podcast “Perder a vergonha”.

 

Das reinvindicações dos professores ao prazer da conversa, da evolução da escola às fardas da marinha, da vergonha de falar em público à descoberta do livro de cada um, de muito se fala neste encontro que passa a correr.

 

O intimismo da rádio, a curiosidade e o dom da conversa deixam a perder de vista a habitual timidez dos entrevistadores e abrem o apetite para mais.

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Naquele tempo, era costume chegarmos de madrugada

às grandes capitais do mundo, depois de varrermos países

e países de estradas secundárias com as nossas lanternas,

e anunciarmo-nos como quem veste a guerra e o amor,

fazendo soar os sinos dalgum pequeno campanário de algibeira,

normalmente defronte de um balcão feito cascata,

enquanto as nossas vozes vendiam ilusões bíblicas

às raparigas que olham para o tecto como se fosse o chão.

 

Era ainda demasiado cedo para que os sapatos se impusessem

entre os pés e a estrada; demasiado tarde, todavia,

para que lhes confessássemos os jardins onde sonháramos

imagens difusas, feitas apenas de cor e dispersão,

antes da ordem muito antes do caos, a anos-luz da arte

e do abandono. Uma força imoral, uma urgência rara como todas

as urgências, decompunha espelhos sobre espelhos, encadeava

os dias e inventava a serpentina aparentemente interminável

a que se chama vida quando se tem ainda a dentição intacta.

 

Foi há muito tempo. Somos ridículos, hoje, quando evocamos

escaramuças ou risos, lábios fendidos ou beijados,

como se quinhentas vezes o nevoeiro não tivesse feito gritar

entretanto a sirene do nosso cabelo em recessão, como se

as nossas namoradas de Toledo ou Avinhão não se tivessem abortado

a si mesmas quinze vezes, e os anos, também a elas, não toldassem

os passos, como vómito até aos calcanhares. Resta-nos

a compostura de uma gravata nova, do cabelo aparado

até ao pavilhão auricular, e a talha dourada de uma partitura de Bach

para enganar a flacidez da carne, como se a carne precisasse de nós

para sentir a deserção da água, a inominável deserção da água,

de todas as praias a que não voltaremos.

 

 

De Desvão (2017, não (edições))

 

data de publicação
25.05.2022
GRAVAÇÃO E EDIÇÃO ÁUDIO
Oriana Alves
masterização
Sérgio Milhano, PontoZurca