A amante
A amante escuta as suites para violoncelo com pesar
invisível secreta enche-se de rumores (o divórcio
atrasa a mulher manipula as contas, coitado) fica
quando ele parte de férias separadas mais o filho,
envia fotografias do rio o menino sobre o passadiço
suspenso subindo degraus. A amante chora quando ele
troca estrela por pedra, peso por brilho, negando porvir.
A amante recita a raiz das palavras, porém preferia
dar-lhe a mão na rua e não manter certa distância
discreta, ama por defeito refém da mais velha espera
que tudo torna menos vivo, até ele chegar abrindo os braços
para a tomar de assalto. A amante lamenta não poder sonhar
a dois, neste cansaço interrompido em que se encontram
no tempo roubado aos deveres (trabalho e família),
mas ele pensa sempre nela em primeiro plano
diz cheio de verve e poesia, a amante ilumina-se crente
na comoção que a impele presa no enredo paralelo
avança de peito forrado a ouro no chão que se levanta
crescendo sempre, por amor diz a duas vozes ventríloqua.
A amante cerra os dentes, sorrindo por desfastio quando ele por-
ventura concede inteira presença, em verdade, nada importa pois
o amor tudo salva sendo seu fim firmar o móbil primeiro
de qualquer movimento, ímpeto espelhado de si para outrem.
A amante faz por cumprir o papel capital na mecânica da paixão
assolapada, percebe o fundo quando se entrega ao desengano
vendo tudo em plongée olhos de pássaro, além da mesquinhez
de mínimas jogadas em que o traçado cumpre regras repetidas.
Mais do que ser feliz em primeiras núpcias, a amante procura consumir-
se em demasia na labareda desejante, brusca e florida, sabendo estar
(mos) aquém do infinito a cada passo: se o corpo súbito se desfizesse
na medida exponencial da entrega peito aberto seríamos somente
espaço desmedido nada. A amante descobre, pois, na ordem
um esteio contra o excesso devorador velocíssimo, tricota tarefas
impudente, quase seca, contando pelos dedos as horas do seu regresso,
quando repousa no peito eriçado escutando correr o sangue, canção
de abandono terno e fértil, apelo matriz solidez contra o ruído
cavado desde o princípio de tudo. Fora da multiplicação carnal
dos filhos-satélite (mesmo para quem talvez pouco os quisesse afinal)
a amante caminha pela praia deixando seu rastro no areal, imersa no bater
do mar, espreitando grutas, pequenas poças de água clara onde volteiam
camarões translúcidos contra os braços túrgidos das actínias
caleidoscópicas: na fronteira entre água e terra a amante perscruta
tudo absorve cada mínimo detalhe e sonha
um encontro tecnicolor um beijo com língua.
Diana V. Almeida
de Cosmos e casas (2021, Urutau)
30.03.2022
Oriana Alves
PontoZurca