aqui se faz a carne
emociona-me o
slogan caindo como verso bíblico:
aqui se faz a carne
que se desfaz
a carne dos que morreram antes
de conhecer os seus poetas
dos poetas que morreriam antes
dos seus poemas,
este poema não é dos poetas:
pertence à promiscuidade
dos piores dias, ao resto da vergonha
que alguém encontra apodrecida
anos mais tarde atrás do sofá
é a palavra que ia ser dita
mas foi demitida por nunca chegar
a horas: fica mais uma noite
talvez chegue a amar
os teus primeiros cabelos brancos,
nunca me chegaste a contar
a história do dente partido
este poema sufoca
todas as palavras que derivam
do latim para ultimamente
dizer a palavra paixão,
não cabe no bolso ou na rotina
é a etiqueta do vestido
de baile que deixa a ferida
mais funda o álcool nocturno
para esconder as insónias
o victor já dizia
que a roupa dos poetas
parece sempre velha
mas isso é só a idade dos sonhos
ganhando bolor na gaveta
ou o modo estacionário de morrer
este poema é o cocktail-angústia
com talo de aipo,
o último verso que
sai a galope
pelas mãos do poeta medíocre
a caminho da tabacaria,
que apesar da raiva
da solidão estrutural
de um primeiro verso,
persegue a palavra até ao
último fôlego,
o poeta corre
a maratona cego manco
triste muito
triste só para trazer
à vida um último verso que
não enlouqueça. mudo
estropiado asmático
mordendo para sempre
rostos que o atormentarão
o último verso ignora o esteves
que acena à saída
e é abandonado
na pista de corrida
porque o estafeta se esquece
sempre de chorar
aqui se faz
o verso que não depende da carne:
essa que se desfaça
na sala de cinema vazia
enquanto passa o genérico
em pano negro com todos os
nomes impossíveis:
a cicuta diária das palavras
é ainda a única
forma de hidratação
e não importa perder em tudo
ou não chegar nunca a conhecer
os primeiros cabelos brancos,
quando o estafeta
abandona o testemunho
a meio da pista
só o verso afinal
precisa
de sobreviver.
De O Quarto Rosa (semi-finalista do Prémio Oceanos 2019, Corsário-Satã, Brasil)
12.07.2022
Oriana Alves
Pedro Baptista, PontoZurca