[Ao poema pensei chamar-lhe]
Ao poema pensei chamar-lhe
um comboio depois de Auschwitz
mas não, seria soberba minha
apanhar-lhe boleia
quando o que queria
era dizer do meu amor pelos comboios.
Debruçava-me perigosamente
desse terraço sobre Campanhã
onde a Matilde me denunciava à minha mãe
enquanto lhe compunha uma onda alta
no cabelo que a tornava grácil, esbelta.
Descíamos Pinto Bessa e os saltos altos
enterravam-se-lhe entre o quadriculado
da calçada, mas ela gostava
o meu pai também
contornava-lhe melhor a perna
e o mundo desenhava-se na perfeição.
Nada sabia dos comboios
incapaz de lhes reconhecer
qualquer indício torcionário
amava-os nessa ingenuidade
da pouca terra ser muita
e me levar para bem longe
como gostava.
Não que não gostasse de ter asas
mas nunca senti que as do avião pudessem ser minhas.
Por isso declinava-o como meio rápido
gostava da lentidão
por exemplo, com que a Denise
(mãe brasileira, pai alemão)
delineava o “a” e o “r”
ou o modo como a Milita
me tirava as medidas
para o meu novo casaco de fazenda
azul.
Tinha crescido um palmo e meio
e a mão do meu pai então enorme
mostrava que o antigo já não servia.
Era uma menina sensual
e não sabia
assim como que quando nascia
Anne Frank faria 37 anos.
Ficava-me a ver comboios
como quem vê navios.
Inédito
09.07.2022
Oriana Alves
Pedro Baptista, PontoZurca