Campanhã
Hoje o café fechado faz-me sentir
falta da mesa estrategicamente a um canto
e de um verso onde encostar a cabeça.
A senhora da barraquinha da fruta
vende-me os últimos figos secos
com o coração de noz
e dá-me por troco palavras amigas
que me acompanham até à linha 7
onde um rapaz exemplar transporta a Maria Callas
debaixo do braço como um qualquer instrumento
até a depositar sobre a plataforma onde agora somos quatro
contando com a rapariga de Erasmus
que fixa as gaivotas através de uma lente
trazendo-as do topo da Moagem Ceres
até muito perto
entretidas com uma matéria informe cujo fim muito mau
se transforma entre os seus bicos em muito bom.
Penso nessa tensão como uma corda rouca
fumo um imaginário cigarro
com gestos largos e lentos
como quem deseja prolongar o amor para além da dança.
A locomotiva mãe vem buscar a açafrão e a coração de boi
juntas seguem como um animal articulado.
As gaivotas voam para outra hora.
Comprido, cinzento, com pelagem de rato
continua Janeiro como o pior dos meses
Inédito
06.07.2022
Oriana Alves
Pedro Baptista, PontoZurca