E agora, José?
Há sons que resistem ao tempo. Nesta gravação antiga, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) a dizer o seu poema “José” (publicado em 1942), é o poder de cada verso que se agarra aos ouvidos e atua em nós “como um tónico” ou como um “golpe de espora”.
A comparação é de José Saramago (1922-2010), e está presente no excerto da crónica “E agora, José?” (escrita em 1973), que aqui também se escuta na voz de Sílvia Laureano Costa.
Neste final de 2022, em que festejámos 100 anos de Saramago, celebramos as palavras que perduram como motes para resistir à dureza dos dias.
E agora, José?
Há versos célebres que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas – ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drummond de Andrade, acompanha-me desde que nasci, por um desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso de tempo sem medida. Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: “A agora?” Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atónitas. “E agora, José?” Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tónico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo da interminável ladainha que é a piedade por nós próprios.
José Saramago
Excerto da crónica “E agora, José?”, publicada no livro A bagagem do viajante, de 1973.
23.12.2022
Carlos Drummond de Andrade e José Saramago
Carlos Drummond de Andrade e Sílvia Laureano Costa
Oriana Alves
PontoZurca