Passam helicópteros
passam automóveis
passam aviões
os refugiados
passam nas manchetes
as notícias passam
livros apodrecem
mudam-se as vontades
os relógios crescem
cortam-se os cabelos
e no entanto é junho
desde aquele dia
os lençóis da noite
retornaram brancos
já passou setembro
trinta carnavais
já lavei as mãos
um milhão de vezes
já troquei de pele
e no entanto os dias
permanecem junho
os jornais não sabem
dizem que na China
fabricou-se um tempo
em que não é junho
mas de que me servem
outubros de lata
cobertos de ouro
março abril e maio
vendem-se baratos
em caixas de vidro
nas lojas de Tóquio
entre cerejeiras
de flores perplexas
porque tudo é junho
desde aquele junho
marinheiros sabem
este é um mês escuro
os faróis se acendem
ondas trazem restos
de dezembros mortos
que não vão embora
que ficam nas praias
quebrando nas pedras
velhas ampulhetas
junho nos desertos
sempre é mais bonito
as dunas caminham
num silêncio reto
sem nenhum destino
sem saudade alguma
das chuvas caindo
sobre os calendários
nos jardins supérfluos
dos grandes palácios
ou nos vasos plásticos
dos supermercados
mesmo a flor-de-maio
converteu-se a junho
exibindo em ramos
corolas de cobre
abertas em fogo
numa primavera
que jamais se move
nunca é germinal
nunca é messidor
sempre é sempre junho
tudo está suspenso
desde aquele dia
quando o sol subia
no mais alto norte
línguas livros nada
sempre o mesmo verso
surpreendentemente
sempre o mesmo verso
deito durmo acordo
visto cem camisas
uma sobre a outra
uma igual à outra
deito durmo sonho
que me chamo junho
e que toda a vida
dura trinta dias
deito durmo acordo
sempre o mesmo susto
medo de que junho
logo chegue ao fim.
Eucanaã Ferraz
in Retratos com erro (2019, Tinta da China)
13.02.2022
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