Nas traseiras da cidade ocupada
para a Raquel
[depois de O Silêncio de Ingmar Bergman]
Quando a vimos pela primeira vez
pensámos que já tinha morrido
—a nossa irmã—não prevenindo
que seríamos o que ela fazia.
Nas traseiras da cidade ocupada
batendo à máquina num quarto
cujas janelas todas vedam
uma língua alheia
à que nos habita
a beleza existe
como nunca na desfiguração
moral, no desmaio
da esperança aleijada, excessiva.
É-nos a língua estrangeira cifra
e surto de esquisito consolo.
A crueldade existe
e não fomos nós quem a inventou.
A luxúria existe
e não foi por termos nascido
foi haver fome, incontidos vícios
blindados lábios, cândido calor
embaciado, calar que nada
ouve, é a nossa irmã
que entra no bar de casaco fino
e nós que não prevenimos
o bruto penetrar de corpos
os furos de chumbos repentinos.
Quando a vimos passar o vestíbulo
a entrar para o banho, a descer
o vestido, a exibir ao espelho
as nádegas de escultura
soubemos a partir daí
que a nossa mãe era diferente.
O conflito torce-nos
entre fofas almofadas
uma brancura insuspeita
uma aguda tortura.
Saímos para as traseiras
do quarto, na cidade
ocupada, arma de brincar
na mão, divertindo o dilúvio
no olhar, achando
o bom velho senil
e a caridade existe
mas é assim.
Nós os anões aos pinotes
procuramos o ar
Enquanto o abandono
com pernas esguias e claras
ao apito da locomotiva
marcha nas traseiras
a cidade despe-se
de membros válidos.
Nas traseiras da cidade
no interior das couraças
nos contentores do degredo
vive-se a guerra, travam-se
as mulheres
com suas soluções
de rancor e abrigo.
A infância trilha a solidão
com os passos precisos
Margarida Vale de Gato
de Atirar para o torto (2021, Tinta da China)
23.03.2022
Oriana Alves
PontoZurca