Borrasca
O que a voz vê
não se escreve nesta língua
que se ajoelha linha após linha
como que fustigada pelo ruído
de torres tombando e chuvas torrenciais
A voz procura o cocuruto da cabeça
para se empoleirar e avistar
longínqua e vagamente
o que está contudo perto
Por vezes a voz é deixada no altar
ou na mesa do vestíbulo
até que alguém a liberte
de ter destino e destinatário
Noutros momentos
a voz entrançada pende
à maneira dos cabelos e das cebolas
e de tudo quanto faz chorar
O que a voz vê
não se alinha como a escrita
nem se conta como dinheiro
nem se calcula como tempo
porém arde como medula de astro
A voz descobre à sua custa
que o luar há muito se separou da lua
que a lua desenha órbitas únicas
na carta do céu
O que a voz inicia
por sua conta e risco
é a tempestade no mar alto
a bordo de barcos a brincar
O que a voz vê
é a jactância das ondas
a sua espuma canina
cheia de pontos finais
O que a voz não reconhece
na euforia ofegante
ou nas paisagens submersas
é o dom de destoar
a arte da dissonância
das marés desafinadas
e o prazer de naufragar
Regina Guimarães
de Traumatório (2020, Douda Correria)
19.03.2022
Oriana Alves
PontoZurca