Estreito de Gibraltar
Impossível discernir na tua cara
se te dói todo o caminho da garganta
ou mais abaixo
nas grutas e nos lagos da barriga
Na origem das ideias que tivemos
estava o desejo de adesão e desabono
O medo vigiava o nosso sono
e o cativeiro tornou-nos extravagantes
Impossível distinguir na tua cara
a luz que algum licor lá acendeu
dessa noite de anticorpos
que dá rugas aos amantes
Na origem das perguntas que fizemos
estava a volúpia do pânico
e o prazer da servidão
mas escapámos quase ilesos à elegância
E todas as palavras que agora proferirmos
no idioma das feras mal lambidas
soarão ao parecer da maioria
serão embaraçosas e sofridas
como as casas que se levam às costas
e se despejam aos pés dos agiotas
E todas as palavras que agora mastigamos
não nos cansamos de as mascar
até que segreguem a baba de aurora
com a qual queremos sarar o mundo
colar o céu à terra
e calar a calúnia
sem recorrer a fraseados
nem à libidinosa cortesia
Impossível separar na tua cara
o desdém da boca que o ostenta
e o sorriso do olhar que me sustenta
Regina Guimarães
de Traumatório (2020, Douda Correria)
15.03.2022
Oriana Alves
PontoZurca