Lua gelada noite escaldante
Imagine-se uma janela
uma janela que nos perseguisse
não com o muito que se esconde
mas com o pouco que se confessa
Imagine-se o caixilho e a vidraça
a tinta escamando.
Imagine-se a esquadria
dentro dela uma cara
cardápio
ementa
preçário
Escapei ao espelho
mas não à janela.
Sinto subirem até ao parapeito
o cheiro a urina dos cães
o cheiro a sexo da chuva miúda
o cheiro a morte das flores cortadas
Debruçada a essa janela
reinando sobre odores
fico prisioneira de uma vénia
e de uma carícia demasiado expressiva
Medito sobre um tempo
em que sem pensar
sem pensar dormia a sono solto
respirava sem pensar
até pensava sem pensar
esquecendo pernas pesadelos e pulmões
desígnios e devaneios
Debruçada à janela descubro
que me perdi da casa grande
e busco apreensiva os meus penates
temendo tê-los ofendido
tomando-lhes o lugar e a vez
Escapei às portas
as da frente e as das traseiras
mas as janelas
falsas ou verdadeiras
conseguiram acossar-me
Desde então não há instante
em que não observe que sou observada
e isso me absorva
como a noite suga o mel e a cor de todas as coisas
possuídas ou alheadas
Regina Guimarães
de Traumatório (2020, Douda Correria)
18.03.2022
Oriana Alves
PontoZurca